terça-feira, 3 de janeiro de 2012

RECORDAÇÕES

Nos meus tempos de infância palmilhei vezes sem conta o chamado Vale das Termas que fica adstrito à bucólica Vila de Cabeço de Vide. Este vale é um dos mais interessantes biomas do Distrito de Portalegre, com uma fauna e uma flora muito rica e diversificada, mormente na sua composição ornitológica, um paraíso onde a interação do homem se fez sentir desde há muitos milhares de anos, e onde a presença dos nossos ancestrais desde o paleolítico até aos nossos dias deixou marcas indeléveis desde lá de cima, da Horta Tirana até lá mais abaixo ao chamado Açude do Pisão. Ao todo, neste percurso existem doze ruinas  de antigos açudes e outras tantas azenhas aonde, até há poucas décadas, ainda laboravam, e os moleiros tinham uma intensa atividade. Eu próprio ainda tive o prazer de ver parte destes engenhos a produzir a bela farinha e comi do belo pão que por aqui se produzia. Foi por uma sentimentalidade que desde há muitos anos me liga a este mundo mágico, onde se impõe uma natureza que me atrai pela sua espécie de feiticeira magia, que vim instalar-me aqui há mais de duas décadas, tendo tido, assim, a possibilidade de juntar às recordações de outrora uma vivência direta em comunhão fraterna com as suas genuínas belezas naturais. Destas belezas de outrora, das quais ainda restam manifestações suficientes para me encantarem e adoçarem a vida, os açudes e azenhas são, sem sombra de dúvida as que mais me marcam e me trazem doces nostalgias dos meus tempos da infãncia.
Foi em função destas recordações que, ao ter encontrado uma quadra do Tio Chico dos Moinhos, moleiro de Casével, Castro Verde, num jornal regional, me propus cantar num poema, também de tipo regional, usando a quadra como mote, as belezas deste vale que continuam a adoçar-me a alma e a inspirar-me a poesia que, neste caso, intitulei de "RECORDAÇÕES".
Então aí vai verso, deve ter-se em conta que aos verbos ver e ouvir deve ser dado o sentido de recordar.
 MOTE DO TIO CHICO
Ó velas do meu moinho,
Rodízios da minha azenha...
Vão rodando lentamente
Esperando que a morte venha.

No seu curso calmo e lento
vejo as curvas da ribeira
e a frondosa oliveira
balançando ao som do vento,
que, de momento a momento,
vinha soprar de mansinho,
quando eu fazia o caminho
que do vale sobe ao monte.
Ó pedras da velha ponte...
Ó velas do meu moinho!...

Vejo a linda moleirinha
de manhã, quando ia à fonte,
levando na meiga fronte
uma aureola de farinha...
e, depois, quando à tardinha
sosinha descia a brenha...
Não há nada que contenha
estas saudades de outrora...
O velho açude... e a nora...
Rodízios da minha azenha.

Ouço a água que caía
em sonoroso caudal,
e o doce madrigal
da alegre cotovia...
E, ouço na manhã fria,
o negro melro plangente,
a trinar suavemente
velhas árias e canções...
As minhas recordações
vão rodando lentamente.

Vejo os baguinhos de trigo
que sob o peso da mó
se transmudavam em pó
naquele moinho antigo...
E quando agora prossigo
com esta breve resenha,
não há nada  que detenha
saudades e emoções
quando passo os meus serões
esperando que a morte venha.

     Matos Serra, in
  Belezas do Alentejo

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